quarta-feira, 30 de março de 2011

Los Hermanos


Deveria começar por apresentar a banda, não é? Contar a habitual história da metamorfose ocorrida após o estrondo sucesso com a canção mais pegajosa de 1999: Anna Julia. Bloco do Eu Sozinho, segundo e, talvez, melhor disco da banda brasileira Los Hermanos, ocuparia o resto do meu comentário numa espécie de crítica. Estou certo que se me propusesse falar sobre a banda de Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante há uns meses sairia algo com esta estrutura. Ignorava o 4, último disco da banda – porque ouvira, bocejara e nunca mais lhe tocara (mais-que-perfeito, este pedaço de prosa). No outro dia estava suficientemente mariquinhas para, com o rigor que só um mariquinhas pode ter, avaliar este disco dos Los Hermanos. Mariquinhas? Percebam: sensibilidade e calma. Perceberão ainda melhor lá à frente. Hoje não é mais um objecto inferior. São mesmo quatro os discos dos Los Hermanos, e actualmente ouço três deles. Porque já ouço o 4.

4

Os jovens portugueses têm uma resistência ao sotaque brasileiro. Telenovelas? A música “brega” importada? Jogadores de futebol? (Incompreensível: ouvir o Luisão é das melhores coisas que levo desta vidinha.) Estou a tentar explicar a falta de entusiasmo recebida sempre que tento apresentar os Los Hermanos, ou a sua maior e melhor parte (toda a gente conhece o êxito Anna Julia). Hoje não insisto, nem me incomodo com a desconfiança. Saber lidar com as resistências dos outros é reconhecer as nossas próprias resistências. E se com outra banda este discurso é tão óbvio que vira deprimente, com os Los Hermanos é apropriado. Comigo a paixão foi imediata, tal como a vergonha de sair com eles para a rua de braço dado (as raparigas sentem o mesmo em relação a mim, tirando a parte da paixão). "Vergonha de quê?", pergunta o único leitor que ao olhar para o tamanho do post decidiu continuar. "Eu acho o Jon Bon Jovi um grande compositor. Todo o meu lado melodioso, a minha procura pela melodia bonita, eu devo ao Bon Jovi, ele foi o meu alfabetizador musical.", disse Marcelo Camelo numa entrevista. Isto assusta, não assusta?


Sentimental, álbum Bloco do Eu Sozinho (2001)

Volto à ideia: os Los Hermanos são uma banda mariquinhas. Curiosamente a coragem que lhes reconheço depende desta avaliação. Paira no ar a ideia de que quase caiem num romantismo cujo romantismo é pouco apreciável. Aquele que os minimamente exigentes rejeitam, porque é fácil, não dá respostas, não alimenta um reconhecimento estimulante, não nos deixa a pensar nas palavras porque são só palavras iguais às palavras mínimas que trazemos connosco para a vida. Também não procuro esse romantismo no trabalho de quem quer cantar sentimentos. Só não alinho nos exageros da exigência (que tal isto?). As canções têm palavras e sons. Por terem também sons, e principalmente por esses sons constituírem o seu âmago, uma canção não é um poema. Esta questão mereceria outro post, porque nada tem que ver com os Los Hermanos. Eles oferecem-nos letras excelentes: não dão respostas (ninguém dá, por isso aqui nada muda), alimentam um reconhecimento estimulante (ou estimulam a imaginação), deixam-nos a pensar nas palavras, mas, mais do que isso, entregam-nas com respeito pelo seu verdadeiro propósito. Id est, embrulham-nas num ambiente musical irrepreensível. São uma grande banda; cumprem os requisitos para serem uma grande banda; e há grandes bandas que arriscam mais o estatuto de grande banda. Mas como o destino é infame olha-se para eles e avista-se sempre aquela linha ténue que separa o “bom” romantismo do “mau”. Tanto quando descrevem uma relação, como quando pegam numa guitarra para o mesmo efeito.


Exemplo de coragem
Mais uma canção, álbum Bloco do Eu Sozinho (2001)

Felizmente, desde Bloco do Eu Sozinho, nunca caíram em sentimentalismos embaraçosos, nunca deixaram de ser bons. Quem considera o contrário está confuso - não tem sensibilidade para perceber que apesar da fronteira existir, torná-la nebulosa sem nunca desrespeitá-la é mestria daquela digna de mestres. Esta ideia da fronteira no trabalho dos Los Hermanos não tem aqui a sua principal utilidade.


Eu sei como é doce te amar, o amargo é querer-te pra mim
Condicional, álbum 4 (2005)

A hipótese "trabalho de laboratório" é absurda para descrever a obra dos Los Hermanos. A aproximação entre o rock e a música popular brasileira não me parece ter sido um objectivo, um fim que eles tenham perseguido, a concretização de uma ideia ao jeito de João Aguardela (se sim, o trabalho do português será sempre mais ambicioso pela distância a que se encontravam as duas realidades que quis unir). Só isto: a música brasileira (ou a música brasileira criada por esta banda) gosta mais dela própria - brincando com o nome de um projecto de Tiago Pereira, realizador do documentário Tradição Oral Contemporânea com B Fachada. João Gilberto influenciou mais Marcelo Camelo que os Beatles, e inconscientemente deu-se a aproximação. No álbum 4 essa aproximação atinge a perfeição.  Alguns brasileiros imploram: "não me enche o saco com essa história de morenas, 'tá bom?" Por isso consideram 4 tedioso (ou pela sua coesão). É, para muitos, o culminar do processo que aproxima a banda da ideia de "seca". À primeira audição o meu veredicto encaixava-se nessa crítica.  Nunca os Los Hermanos se levaram tanto a sério como neste disco. Com calma acabamos também por admitir  que nunca como no 4 aquelas barbas lhes assentaram tão bem. Estão sábios; capacitados para dar um passo em frente. E 4 é um passo em frente, ainda que para o fim. Aí chegados as barbas não nos apresentam uns náufragos. Chegaram ao leme da embarcação e orgulhosos do percurso. Este álbum de 2005 lembra a tendência actual das músicas levadas ao Festival da Canção em Portugal (embora este ano tenha notado o esquecimento dessa fórmula). Mar, mar, mar. Não se faz a apologia do mar como no Festival, mas há mar. Quando há "ilha", "farol", "cais", "barcos", ou quando, sem referências (a maioria, até), cheira-nos a praia (não a Sasha Beach). Uma viagem vagarosa até o vento soprar um pouco em O Vento e agitar a embarcação durante duas músicas: Horizonte Distante (ouço Neutral Milk Hotel aqui, para meu rejúbilo) e Condicional. Com arranjos muito bonitos, este é um álbum extraordinário - que expectativas tinham quanto às minhas críticas?


Anna Julia, álbum Los Hermanos (1999)

"Entretanto descobri também que tenho ciúmes dos Los Hermanos. Tenho ouvido o disco ao vivo e é no mínimo arrepiante ouvir aquele público. Quero aquilo para mim!", disse Hélio Morais dos Linda Martini ao Bodyspace. Compreensível. Eu que não sou nada deste tipo de manifestações chego a invejar aquela gente. E um dia cantar assim, sem vergonha na cara, as Annas Julias da nossa vida só poderá significar sucesso.

Ouçam os brilhantes Bloco do Eu Sozinho, Ventura e 4. Para constatar a evolução ouçam também o primeiro. Ouçam tudo, se faz favor.

António Vieira   

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